quinta-feira, outubro 02, 2025

Quando a Marília Garcia me fez andar (Junho/2021)

O impacto que uma poesia causa no corpo do leitor não precisa ser considerado como simples reação individual e individualizante ou, ainda, como produto da identificação pura e simples e, portanto, mais um elo na corrente da repetição e manutenção de um estado de coisas. Prevalece ainda hoje no território do pensamento a tendência de considerar as reações corporais como inferiores - o corpo ganhou, faz tempo, fama de trapaceiro; logo, o encontro entre o corpo do leitor e o do poema geralmente não é considerado ou, melhor, não é explicitamente tomado como ponto de partida. Talvez este pequeno texto seja um gesto, um desejo de encontrar por aí um maior número de críticas que comecem com ele: com o corpo. 

Gosto do impacto que uma obra causa no meu corpo. Esse estranhamento-estremecimento, que a gente não entende direito por que, nem como, nem onde. Estamos longe de haver mapeado toda a potencialidade do encontro entre a materialidade do corpo e os objetos de arte.

Li recentemente "Parque das Ruínas", da poeta Marília Garcia - não conhecia o trabalho dela. Li, depois fui para a cozinha preparar o almoço. Meu filho chegou, falei então para ele que, depois de ler aqueles poemas, estava sentindo vontade de morar em outro país. Estava com vontade de viajar.

Quando vivemos em um novo país ou cidade, passamos por um tempo em que estranhamos todas as coisas - mesmo mudando dentro de nosso país, porque vivemos no Brasil e ele é enorme, muitas coisas podem acontecer. A gente vai para outra cidade, tipo seis horas de ônibus de São Paulo ao Rio. É perto, mas tantas coisas mudam. A gente sente insegurança de abordar alguém na rua, os costumes são outros. Você percebe no rosto dos interlocutores que não fez algo que deveria ter feito ou fez algo engraçado. O outro ri, faz cara feia. Tudo isso é um tanto estressante, mas também incrível. Ficamos vermelhos como ficam as moças apaixonadas. Primeiro mandamento do Rio de Janeiro: quando abordares alguém nas ruas (as da Zona Norte, Zona Oeste, Niterói, Centro, Paquetá e baixada), dirás bom dia, boa tarde ou boa noite. Em São Paulo, abordar alguém com bom dia é estranho, parece que você quer mais do que uma informação, parece que você quer conversa ou, pior, parece que você quer vender alguma coisa. No Rio, algumas pessoas agradecem ao motorista do ônibus gritando "Valeu, piloto!", a cor da pipoca doce é amarela, algumas pessoas pegam metrô de shorts e biquíni, você pode comprar queijo coalho na rua e bolinho de aipim com carne seca na feira. Tem o R, o S, o mar, essas coisas que fazem os ossos doerem de saudade e que você gostaria de ter trazido nas mãos. 

Morar em outro lugar faz a gente estar pela primeira vez nas coisas e estar na cidade nova é estar perdida. Ler os poemas da Marília Garcia tem um tanto disso. Ela insiste em ver o mesmo lugar, (ver, ver até ver diferente), faz isso e experimenta formas de passagem: de um lugar a outro. Talvez por conta desses movimentos eu tenha sentido uma vontade louca de mover o corpo. Acho que posso dizer que os poemas de Marília Garcia, antes de mais nada, encostaram seu corpo no meu e esse encontro produziu vontade de movimento. Tudo isso antes de eu começar a entender como, onde, por quê.



 Em dezembro de 2016. Em algum lugar do Rio de Janeiro.

Esta não é uma apologia à pobreza mas antes um elogio à vida.

Eu não sabia por que, sabia que tinha que sair, e isso era urgente. Agora vou aos poucos percorrendo o sentido de ter saído. Acho que ajuda não ter dinheiro para comprar coisas e ter que passar os dias, as horas percebendo coisas. Não é dado a todo ser fazer pouco e estar no mundo e em seu corpo. Nos é tirada uma necessidade básica, que é a necessidade da vida, e nos é imposta compulsoriamente, sem que nos demos conta, uma infinidade de necessidades desnecessárias. A riqueza que existe em ser pobre.

Pobre, mas com água quente, com comida simples na barriga, um teto aconchegante e um pouco de dinheiro para se locomover (essas coisas tão boas e preciosas). O ser humano se corrompeu tanto, mas tanto, que acredita sinceramente ser justificável retirar da existência aquilo que ele mais precisa. Não falo em sobrevivência. Sobrevivência é o que experimenta a pessoa que acorda, dá sua vida toda em troca de um acordo inconsciente e sórdido. Para esse que vive na busca incessante de meios, para esse, infelizmente, só resta a medicina e seus aparatos pacificadores.

Ser sobretudo e principalmente pobre, mas possuir recursos que me permitam ver. A pobreza dos recursos psíquicos é mais massacrante do que a diminuição nos recursos financeiros de uma pessoa.

Existe ainda a alegria do encontro com o outro. A alegria genuína que existe em nos depararmos com o outro. Se não sabe, o outro pode ser um cão, um gato, seu vizinho, seu melhor amigo, uma jabuticabeira.